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Radio Viseu Cidade Viriato

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Portugal e Roma, uma luta antiga

A guerra entre o Estado português e a Igreja Católica ficou para a História como sendo uma marca da República, há exactamente cem anos. Mas, afinal, esse era um conflito antigo que vinha desde a Monarquia Liberal. Já em 1834, Joaquim António de Aguiar, o ministro de D. Maria II, era conhecido como o 'Mata Frades'

O Papa Bento XVI chega a Portugal no centenário da República, quando se celebra o ano que protagonizou a maior ruptura entre Portugal, velho país católico, e a Igreja de Roma. Aquele ano, 1910, ficou marcado por conflitos profundos entre o Estado português e a Igreja. Luta institucional que levou a um afastamento - inaudito na história portuguesa - entre as autoridades políticas e as religiosas, e que culminaria na Lei da Separação. Conflito institucional mas também tempos de perseguições, desterros, agressões e, até, assassínios de que membros do clero foram vítimas. Porém, a nova República não pode ser acusada do pecado de ter iniciado o ataque à velha Igreja por-tuguesa. A República apenas continuou o combate que sectores liberais monárquicos há dezenas de anos vinham travando.

A irmã Maria de S. Francisco Wilson, religiosa inglesa septuagenária e com trinta anos de permanência na Madeira, foi presa e metida num barco, expulsa para a sua terra. As irmãs de São José de Cluny que desde 1902 prestavam serviço no Hospital da Misericórdia de Angra, Açores, foram expulsas para o Continente e desterradas em Peniche. Dupla malfeitoria da República? Não, porque se a freira inglesa da Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora da Vitória foi expulsa 15 dias depois do 5 de Outubro, as de São José de Cluny foram-no 15 dias antes da queda da Monarquia. Esta simetria mostra que a República, nos seus primeiros tempos marcada por um anticlericalismo feroz, não fez senão acentuar a tendência que vinha desde que D. Pedro IV desembarcou no Mindelo, em 1832, para defender o liberalismo. Em 1910 já havia muitas décadas de populares a atirar pedras às janelas dos conventos, e também muitos governos, e até monarcas, a retirar à Igreja o papel exorbitante que fora sempre o dela em Portugal.

Quatro dias depois de a República vencer em Lisboa (e ser implantada por telégrafo no resto do País), uma freira inglesa envia um telegrama a cada madre superiora dos conventos madeirenses: "Irmã Superiora, tire imediatamente o hábito e entregue irmãs às famílias. Wilson, presa na Fortaleza." Wilson era ela, Mary Jane Wilson - que dá nome, hoje, a uma estrada municipal entre o Santo da Serra e o Funchal. Entre a homenagem actual e a perseguição que lhe foi feita nos primeiros dias do Portugal republicano, a justiça inclina-se mais para a que agora se lhe presta. A estadia na Madeira da irmã Maria de S. Francisco Wilson, para lá da querela religiosa, ilustra-se por uma acção notável. Construiu escolas e hospitais e a sua participação no combate à epidemia de varíola, em 1906, encerrando-se no Lazareto com os doentes condenados, valeu--lhe a Torre e Espada com que o rei D. Carlos a agraciou.

Em 1881, quarentona, Mary Wilson chegou à Madeira, com o curso de enfermeira e já católica, depois de ter abandonado o rito anglicano em que fora educada. Com a vontade férrea dos convertidos, deu-lhe para o proselitismo no sentido contrário ao do seu compatriota Robert Kalley, que, algumas décadas antes, tinha feito na ilha a maior evangelização protestante em território português (que ocasionara, aliás, o exílio de cerca de dois mil madeirenses, em 1846, para as Américas). Mary Wilson abriu centros de catequese e orfanatos, palmilhou a Madeira, em peditórios para as boas obras, tornando popular a sua silhueta austera: vestido preto, chapéu coberto com véu e uma capa que lhe chegava aos pés. Devota do Poverello, fundou a Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias. Duas semanas depois do 5 de Outubro de 1910, é expulsa e regressa de vapor a Inglaterra. No ano seguinte, com o apaziguar da sanha republicana, voltaria para a Madeira, para morrer em Câmara de Lobos, em 1916.

Sucedeu, pois, à freira inglesa, em tempos novos republicanos, o que sucedera no mês anterior, no estertor da Monarquia, às irmãs de São José de Cluny, expulsas do Hospital da Misericórdia de Angra, e obrigadas a exilarem--se em Peniche. Em ambos os casos, a vontade do Estado justificava-se porque a tradição das décadas anteriores para com as ordens religiosas bebia na lei de 1834, de Joaquim António de Aguiar, ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça. Esse decreto extinguia os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas religiosas de todas as ordens religiosas. E todos os bens dessa origem foram secularizados e incorporados na Fazenda Nacional.

Joaquim António de Aguiar teria uma longa carreira política, por três vezes chefiou um Governo, mas para o País seria sempre a alcunha que evoca aquele célebre decreto: o Mata--Frades. No entanto, ele era católico convicto, devoto com oratório, para se ajoelhar em casa. Essa ambiguidade partilhava-a com Marcos Vaz Preto (1782-1851), padre e mação, que nos anos iniciais da Monarquia Liberal, foi a mais poderosa figura da Igreja portuguesa, tentando reformá-la em nome das Luzes e a mando do Governo, pondo e dispondo bispos. Preto foi confessor da rainha D. Maria II e, nomeado pelo pai dela, arcebispo de Lacedemónia e vigário-geral do Patriarcado, títulos que a Santa Sé nunca lhe reconheceu.

Joaquim António de Aguiar e o padre Marcos alicerçaram a viragem, contra a Igreja tradicional, encetada pela lei pombalina de 1759 que tornou os jesuítas "desnaturalizados e proscritos." E desde cedo a República reconheceu como seus esses, liberais ou não, que retiraram poderes à Igreja. Como conta o padre João Seabra no livro O Estado e a Igreja em Portugal no Início do Século XX, logo em Novembro de 1910, Afonso Costa, ministro da Justiça do Governo Provisório, propôs a transladação dos restos mortais do marquês de Pombal para o Mosteiro dos Jerónimos. E, meses depois, António José de Almeida, ministro do Interior, homenageou em Viseu o seu antigo bispo D. António Alves Martins (1808- -1882), mação, inaugurando-lhe uma estátua com esta frase que se lhe atribuía: "A religião na vida é como o sal na comida: nem de mais nem de menos."

O essencial da discussão ideológica ao longo do séc. XIX, entre os liberais e os absolutistas e, mais tarde, entre os monárquicos e os republicanos, conduzia sempre a esse separador de águas que era a atitude perante os je- suítas. Ou, em sentido mais lato, com as ordens religiosas. Marcados os jesuítas com a expulsão pombalina e todas as ordens religiosas com a ordem de encerramento do decreto do ministro Aguiar - e colados que ficaram, por isso, ao absolutismo -, o seu regresso foi sempre prudente, paulatino e, quando mais ou menos conseguido, logo sujeito ao escândalo por se estar a minar leis que tinham ditado um passo que se queria irremediável.

Afonso Costa faria do anticlericalismo a prioridade política da República. Autor da Lei da Separação, em 1911, há quem empreste ao ministro esta frase: "Esta Lei será tão salutar, que em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu." Na verdade, ele próprio desmentiu tê-la proferido. Mas quando ainda era simples deputado nas Cortes monárquicas e sabia do ressurgimento de algum convento ou de religiosas a trabalhar em hospitais, Afonso Costa denunciava o paradoxo que era ele, republicano, precisar de exigir que se cumprissem as leis monárquicas ditadas pelo marquês de Pombal e pelo ministro do Reino Joaquim Augusto de Aguiar.

João Seabra, no já citado O Estado e a Igreja em Portugal..., faz um balanço notoriamente doloroso para um padre conservador: nos 80 anos de Monarquia Liberal que antecederam a República, poucos reis foram homens de fé. "D. Pedro IV era um incrédulo, o catolicismo de D. Maria (...) era mais formal do que piedoso, e D. Fernando II era um céptico; D. Luís e D. Maria Pia de Sabóia, e seu filho D. Carlos, [nunca estiveram] acima de um formalismo religioso sem fervor, e nalgum caso sem fé..." Restam, pois, D. Pedro V merecedor de um "talvez" e D. Manuel II "de fé sincera e amor à Igreja". Em todo o caso, os reinados destes dois somam 11 anos, período curto para contrabalançar tantas décadas de ataques à Igreja.

Tanto mais que a Santa Sé vivia um século em que, de tão cercada pelas novas ideias sociais e políticas da Europa e, internamente, por ter perdido o poder sobre a cidade de Roma, se fechava em si e se abria a doutrinas reaccionárias. O Papa Pio IX, cujo pontificado foi o mais longo da história (31 anos) publicava em 1864 a encíclica Quanta Cura, cujo Syllabus listava os 80 erros principais do "nosso tempo". E o 80.º erro era que se pensasse que o Papa "tem de se reconciliar e acordar com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna."

Estas ideias extremadas preocupavam certamente o Portugal liberal, que via nas ordens religiosas correias de transmissão de Roma. Essas preocupações também chegavam à corte portuguesa. Afinal, Pio IX fora obrigado a refugiar-se no Vaticano por ter perdido definitivamente Roma, tomada pelo rei Vítor Emanuel II, o unificador de Itália e pai de Maria Pia. Para os católicos ultramontanos portugueses, os reis D. Luís e D. Carlos nunca foram mais do que o genro e o neto do usurpador de Roma.

Em 1895, realiza-se em Lisboa o Congresso Católico Internacional, comemorativo do 7.º Centenário de Santo António. Encerra-se com o grito que Eça imortalizou na boca do Raposão, em A Relíquia: "Viva Nosso Senhor Jesus Cristo!" E também: "Viva o Papa-Rei!" A procissão solene organizada pelos jesuítas, que se dirigia da Igreja de S. Vicente de Fora para o Rossio, é agredida por populares. O episódio ficou conhecido por "a caçada aos padres", que são espancados no chão. Sectores da Igreja suspeitaram que o golpe viera "do neto de Vítor Emanuel", D. Carlos, e do seu homem de confiança, João Franco.

No entanto, foi no reinado de D. Carlos que, em 1901, as ordens religiosas puderam recuperar um estatuto oficializado. As congregações podiam existir se deixassem de sublinhar o seu lado religioso e fingissem ser meras associações de educação ou beneficência - tinham de prometer (no que mentiam certamente) que não faziam noviciado nem votos, quer dizer, no fundo, que não eram religiosas. Uma situação à portuguesa, de compromisso. Que conviria e se manteria se para lá dos muros dos conventos a questão religiosa não fosse o melhor motivo, porque a mais mobilizadora, para pôr em causa o regime.

Em 1891, rebentou o caso Sara de Matos. Em Lisboa, no Convento das Trinas, das Irmãs Hospitaleiras, morrera uma jovem, Sara Pereira Pinto de Matos, de 14 anos, órfã. A irmã Coleta logo no primeiro interrogatório da polícia admitiu que se enganara num remédio que lhe dera. O jornal republicano O Século explorou o filão e, além de enveredar pela tese de envenenamento cometido pela freira, sugeriu que a morte fora provocada para camuflar a violação de Sara por um jesuíta. O País, e sobretudo a cidade, excitara-se com a história, a irmã Coleta foi metida no Aljube e fizeram-se romagens ao túmulo. O Governo teve de prometer um inquérito ao funcionamento dos hospícios e outras casas religiosas.

Pode reconhecer-se, ainda hoje e com testemunho em pedra, o papel que este episódio teve na propaganda anticlerical. No Cemitério dos Prazeres, há um monumento funerário dedicado a Sara de Matos, que foi inaugurado, com subscrição nacional, no ano seguinte ao advento da República. Reza assim a lápide: "Faz hoje 20 anos Sarah/ Que deixaste de existir víctima/ d'um abominável crime!/ (...) Mas este ano é o mais solene por ser o da tua glorificação/ Sim! Já foram expulsos os jesuítas!" - estava-se em 1911.

Dez anos depois do caso Sara de Matos, o caso Rosa Calmon, em 1901. No Porto, a filha do cônsul brasileiro, adulta de 32 anos, queria entrar num convento, contrariando a vontade dos pais. Depois da missa na Igreja da Trindade, Rosa entrou numa carruagem, como combinara com o seu confessor. Ela iria para Espanha não fosse o cônsul José Calmon e populares terem acorrido ao adro da igreja aos gritos de que os jesuítas raptavam jovens para as meter nos conventos. A cidade ficou em estado de sítio durante um mês, empolgamento alimentado até por pareceres médicos. Dois eminentes psiquiatras, Júlio de Matos e Miguel Bombarda, ambos republicanos, explicaram publicamente a lavagem ao cérebro praticada pelos padres, perigosa sobretudo em mente tão comprovadamente frágil que até queria meter-se num convento...

Por causa do caso Rosa Calmon, foram delegações do Porto protestar junto ao rei D. Carlos contra o renascimento e reorganização das congregações religiosas e, especialmente, dos jesuítas. O rei fez questão em reafirmar-se liberal e mandou o Governo de Hintze Ribeiro disciplinar, mais uma vez, as casas religiosas no País. De facto, o decreto do Governo acabou por contornar a lei de 1834 e voltou a legalizar as ordens religiosas. Republicanos, socialistas e anarquistas perceberam o recuo e fizeram dele achas para a fogueira da questão religiosa e, através dela, da questão do próprio regime.

No dia anterior à queda da Monarquia, Miguel Bombarda, médico reputado e dirigente republicano, é morto no hospital de doenças mentais de Rilhafoles por um jovem que já estivera lá internado. No Rossio, a delegação de O Século noticia: "O povo de Lisboa está convencido de que o assassínio foi obra de clericais." A última manifestação anticlerical na Monarquia fez-se horas depois, por populares que subiram ao Chiado e partiram os vidros da delegação do jornal católico O Portugal, dirigido pelo padre Matos.

Mas já os sediciosos ocupavam a Rotunda, e a República ia nascer. A 4 de Outubro, o seminário lazarista de Arroios foi atacado por populares que mataram os padres Barros Gomes e Alfredo Fragues. Barros Gomes, de 71 anos, era um botânico insigne que depois de enviuvar entrou na congregação dos padres Lazaristas, onde se ordenou. Fragues, de 54 anos, era francês e confessor da rainha viúva D. Amélia. Foi ele que educou o jovem rei D. Manuel II. Em Agosto de 1907, a meses de se tornar rei por o pai e o irmão, D. Carlos e o príncipe real Luís Filipe, virem a ser assassinados, o infante D. Manuel ainda precisava de autorização do padre Alfredo Fragues para ler Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas.

A 6 Outubro, o cardeal-patriarca resignatário José Neto, que pretendia fugir para Espanha, foi preso em Albarraque quando ia a caminho da estação do Cacém. Foi levado a Afonso Costa, para ser interrogado, no Terreiro do Paço. O ministro da Justiça deu ordem para que os padres que andassem na rua fossem presos para "evitar abusos" dos populares - o Limoeiro e o Arsenal da Marinha encheram-se de religiosos. No dia 8, à noite, uma patrulha de marinheiros, dizendo-se atacada na Rua do Quelhas, em Lisboa, por "bombas de dinamite" atiradas por "jesuítas" do convento, ocupa-o. Incidentes próprios de dias revolucionários. Mas, nesse sábado, dia 8, o Governo Provisório nem precisa de revolucionar para ferir a Igreja profundamente. Publica um diploma em que no essencial repõe a lei pombalina de 1759 e a lei de Joaquim António de Aguiar de 1834. E tanto bastou para expulsar os jesuítas (com a novidade de que quem voltasse dentro de 20 anos seria preso), acabar com as congregações e expulsar os religiosos estrangeiros. Bastou a reposição das leis antigas para a irmã Mary Wilson mandar as suas colegas de congregação para casa e ela própria ser presa e expulsa.

DN

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