O porta-voz do politburo do Partido Socialista da Unidade da Alemanha falava há já cerca de uma hora, durante uma enfadonha conferência de imprensa, quando o correspondente da agência italiana Ansa, Riccardo Ehrman, o questionou sobre um tema sensível: a liberdade de viajar para os alemães de Leste. Foi nessa altura, quando muitos repórteres já tinham abandonado a sala, que Günter Schabowski transformou a noite de 9 de Novembro na mais importante da história germânica recente. «Decidimos hoje... hum... implementar uma regulação que permite qualquer cidadão da República Democrática da Alemanha... hum... deixar a Alemanha de Leste por qualquer um dos postos fronteiriços», disse o porta-voz.
O relato desta declaração histórica de Schabowski é do jornalista da Reuters Volker Warkentin. O relógio, recorda, marcava 18:53. Depois de ter ouvido da boca do responsável comunista que a medida tinha efeitos «imediatos», correu para o escritório da agência. «ALEMÃES DE LESTE AUTORIZADOS A PARTIR PARA A ALEMANHA OCIDENTAL COM EFEITO IMEDIATO - DISSE SCHABOWSKI». Foi com este despacho de alerta que Warkentin se tornou o primeiro a dar a notícia. Daí a dois minutos, a informação começava a ser difundida em larga escala. Pouco depois, Berlim Leste desfilava para os postos de controlo e para o muro. Saber-se-ia, posteriormente, que Günter Schabowski se precipitara. As alterações só deveriam ter sido comunicadas no dia seguinte, com as regras a permitiriam a saída do território, mas apenas após a concessão de visto.
Demasiado tarde. A decisão pretendida sufocara entre as hesitações da declaração do porta-voz, num anúncio feito demasiado cedo. Demasiado cedo do ponto de vista do politburo. Demasiado tarde para quem vivera 28 anos numa cidade dividida, com um muro a mais. Milhares de berlinenses reivindicaram o direito de passagem nessa noite.
Os guardas fronteiriços, habitualmente com ordens para disparar, mas sem ordens muito claras nessa altura sobre o que fazer com a informação que rebentara nas rádios e televisões, pouco antes, acabaram por não conter a corrente. Como numa barragem saturada, abriram-se as comportas. Sem disparos das torres de vigia, sem cães, sem electricidade nas vedações. Os berlinenses dos dois lados da fronteira abraçavam-se. Maior parte, perfeitos desconhecidos. Mas como se esperassem pelos braços uns dos outros toda a vida. A 3 de Outubro, um abraço mais longo reunificaria a Alemanha.
Barreira «anti-fascista»
Um salto no tempo. Antes da claustrofobia total, na Alemanha de Leste, envolvida pela esfera soviética, Berlim era a cidade símbolo do pós-guerra. Talhada em quatro sectores de influência: norte-americano, britânico, francês e soviético. Os vencedores tinham, inicialmente, o objectivo de reunificar a Alemanha. Mas um novo conflito, a Guerra Fria, congelou o projecto. A debandada iniciou-se. Calcula-se que até três milhões de alemães terão passado para o Ocidente. Berlim tornou-se uma espécie de enclave, envolvido por quase meio milhão de soldados do exército vermelho. Era uma porta no coração do Leste aberta para o outro lado. Na noite de 12 para 13 de Agosto de 1961 essa porta fechou-se.
Três dias depois, no decalque do arame farpado, ergueu-se um extenso muro, a que o líder alemão de Leste de então, Walter Ulbricht, chamaria «a barreira de protecção anti-fascista». O regime tentou suster a fuga com 3,6 metros de altura de betão ao longo de dezenas de quilómetros. Logo no dia 15, Conrad Schumann, um jovem soldado, tornou-se no primeiro fugitivo. Só se deixou apanhar pelas câmaras, que fixaram para a história o momento. Quatro dias depois, o muro faria a primeira vítima. Os números negros de quase três décadas não são consensuais. A Fundação Muro de Berlim aponta 136 mortos. Mas há quem refira que foram mais de duas centenas os que morreram a tentar chegar ao Ocidente.
O sangue não desfez a barreira. Nem as palavras do presidente norte-americano John Kennedy, que, em 26 de Junho de 1963, foi à cidade e, em solidariedade com as vítimas da divisão, declarou-se «um berlinense». A estrutura era o rosto visível da cortina de ferro e do mundo bipolar, equilibrado em duas montanhas nucleares. Só mais de duas décadas depois do «Ich Bin ein Berliner» de Kennedy, os dois mundos arriscariam espreitar cautelosamente para o outro lado da vedação.
A chegada de Mikhail Gorbachev ao Kremlin, em Março de 1985, introduziu duas palavras novas no dicionário político soviético, que seriam exportadas para os do Ocidente. «Glasnost» (transparência) e «perestroika» (reestruturação) tornaram-se os mantras da ruptura interna e a chave para uma abertura ao resto do mundo. As palavras de Ronald Reagan, em Junho de 1987, junto às Portas de Brandemburgo - «Sr. Gorbachev deite este muro abaixo» -, terão ecoado de forma diferente em Moscovo das de Kennedy duas décadas antes. Já em Berlim Leste seriam vistas como mais uma intromissão. A RDA de Erich Honecker - que vaticinara que o muro duraria ainda mais um século - mostrava-se irredutível.
A nova face soviética permitiu, contudo, que se abrissem brechas no Pacto de Varsóvia. No Verão de 1989, a Hungria retiraria o arame farpado disposto na fronteira com a Áustria e tornar-se-ia subitamente um destino de «férias» para muitos alemães de Leste. O objectivo era passar para o outro lado. Berlim comunista proibiria as viagens para a Hungria, mas mesmo assim milhares conseguiriam passar, depois de se terem refugiado na embaixada da RFA. O episódio repetir-se-ia na Checoslováquia.
De Alexanderplatz para o outro lado
À pressão interna, Honecker parecia mais inclinado a responder com uma «solução chinesa» - Tiananmen era uma memória fresca - para travar as manifestações e aos protestos de rua. De Moscovo, Gorbachev segurava as balas nos carregadores. A 7 de Outubro, o líder soviético iria a Berlim, para as comemorações do 40º aniversário da Alemanha de Leste. Durante uma parada, uma multidão de jovens disciplinados trocou os slogans ensaiados por uma exclamação entusiástica espontânea: «Gorbi, Gorbi». Honecker não resistiria muito mais. A 18 de Outubro seria substituído por Egon Krenz.
A contestação não cessou. A 4 de Novembro, a Alexanderplatz, em Berlim, acolheu quase meio milhão de manifestantes. Pediam democracia e abertura. Cinco dias depois, as ruas da cidade voltariam a encher-se. Mas para celebrar o «efeito imediato» que tinha sido anunciado por Günter Schabowski. Volker Warkentin, que vivia no Ocidente da cidade, conta que habitualmente passava rapidamente para o outro lado. Bastava exibir a acreditação de imprensa e o passaporte da RFA. Nessa noite, diz, colunas de carros entupiram as ruas. Toda a gente queria ir passar à zona Oeste da cidade. Ele preferiu esperar mais um bocado: «Normalmente não me emociono - com nada. Mas a visão da fronteira, normalmente vazia, cheia com hordas de pessoas a celebrar o fim da Guerra Fria, apanhou-me. Parei à beira da estrada e comecei a chorar».