Os portugueses estão a fazer mais filhos. Mas não muitos; na verdade, o investimento nesse exercício é tão diminuto que não chega para repor as gerações.
A população portuguesa registou em 2007 - e pela primeira vez desde 1918 - um saldo natural negativo, de 0,01%. O que significa que morreram mais pessoas (103.512) do que aquelas que nasceram (102.492). A taxa de natalidade foi, nesse ano, de 9,7 nados vivos por mil habitantes, quando a de óbitos chegou aos 9,8 por mil. No ano passado, porém, vislumbrou-se um indício, ainda que ténue, de recuperação: segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos a 2008, o país conseguiu uma saldo natural positivo de 314 pessoas. Não é muito, apenas uma trémula luzerna ao fundo do túnel sem retorno em que Portugal se pode converter, como um rectângulo vacante, à semelhança, aliás, da Europa quase toda - continente que se arrisca a ficar, definitivamente, velho, gordo e pouco imaginativo, condenado à morte lenta por falta de sangue novo.
Desde 2003 que o Governo tenta implementar programas de incentivo à natalidade, e ainda esta semana José Sócrates, na recandidatura a primeiro-ministro, apresentou a proposta, inclusa no programa eleitoral do PS, de criar um subsídio de 200 euros para cada criança nascida em Portugal. Mesmo que a implementação da medida gerasse bebés imediatos, já seia tarde para evitar as consequências nefastas que se repercutirão daqui a uma geração. Nessa altura, se a tendência refractária ao crescimento populacional não sofrer alterações, que Portugal teremos? Que paisagem humana será expectável em 2035? Estarão os portugueses em vias de extinção?
A taxa de natalidade em Portugal aumentou, mas não o suficiente para grandes exaltações. Em 2008, registaram-se mais dois mil nascimentos do que em 2007. Se é certo que é a primeira subida da taxa de natalidade registada em cinco anos, também é verdade que não servirá para atenuar o declínio que se verificou até 2007, um ano particularmente negro em que a natalidade diminuiu (a taxa atingiu, pela primeira vez, um saldo negativo de menos 0,01 por cento). O inédito, e a preocupação que deveria comportar, é sublinhado pelos especialistas: "É surpreendente esta evolução em tão pouco tempo. Durante toda a História da Humanidade, houve uma taxa de fecundidade próxima da natural em todo o Mundo", garante Maria Norberta Amorim, catedrática da Universidade do Minho (UM).
E com toda a propriedade. Pioneira em estudos no âmbito da Demografia Histórica, a coordenadora do Núcleo de Estudos de População e Sociedade da UM dedicou grande parte da sua investigação à análise dos comportamentos demográficos dos últimos 400 anos, e concluiu que uma situação assim "existe na Europa apenas desde o século XX - embora se tenha verificado na França com 100 anos de antecedência por a contracepção ter entrado ali primeiro -, mas foram milénios sem que isto acontecesse", afirma. Por isso é que, na sua perspectiva, "a evolução mais significativa da História da Humanidade, em termos de alteração do quotidiano, foi no campo da fecundidade".
A sê-lo, deve-se a uma nova compostura da mulher jovem essa revolução silenciosa do quotidiano. Para Maria Filomena Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Demografia, o fenómeno da baixa natalidade deve-se ao "aumento da participação da mulher no mercado de trabalho e a aspiração a uma carreira profissional bem sucedida, ao prolongamento da educação e ao duplo fardo que para elas implica trabalhar no mercado laboral e em casa, associados ao aumento da precaridade, tanto laboral como dos relacionamentos".
Acresce, ainda, segundo Maria José Moreira, "um adiamento progressivo da natalidade. Vários estudos mostram que há uma diferença entre o número de filhos que as mulheres gostariam de ter e aqueles que efectivamente têm. Um deles, publicado em Maio, diz que nmais de metade das jovens entre os 18 e os 24 anos gostaria de ter três ou mais filhos, e um quarto das mulheres até aos 30 anos apreciaria ter quatro ou mais; todavia, acabam por ter só um ou dois, quando não nenhum", afirma Maria José Moreira, investigadora do Centro de Estudos de População, Economia e Sociedade, da Universidade do Porto, e professora no Instituto Politécnico de Castelo Branco. "Por outro lado", refere, "mudou a concepção do que é ter um filho: os pais temem não ser capazes de dar ao filho o que julgam ser as suas necessidades, tanto do ponto de vista afectivo como material". Daqui resulta a ausência da renovação de gerações, só possível com 2,1 crianças por mulher..
O desfalque de recursos humanos deve-se também, portanto, a um certo aumento do nível de qualidade de vida e ao temor de que a sua manutenção não seja comportável com mais uma boca para alimentar. E, no entanto, essa estratégia não é nova; todavia, os seus efeitos, agora, são muito diversos. "Nos séculos anteriores, todos os comportamentos das estratégias de reprodução estavam condicionados a uma fecundidade próxima da natural. Por exemplo, se uma família rural tinha propriedades e pretendia manter o estatuto e o património nas gerações seguintes, tinha de ponderar o momento do casamento, que se considerava definitivo. Assim, a estratégia passava por um casamento tardio - pelo que havia muitos solteiros, freiras e sacerdotes -, para evitar uma grande repartição da propriedade e obstar a uma regressão patrimonial na geração seguinte, porque se uma mulher casasse cedo, com 15 anos, dado o ritmo de nascimento de dois em dois anos, poderia vir a ter 10 ou mais filhos", explica Amorim.
A docente não deixa de manifestar, porém, a sua surpresa, quando compara a época actual, denominada pós-industrial e de celebrada abundância, com a fecundida da sociedade de há século e meio: "Nessa altura, na passagem de uma sociedade rural para uma que se vai industrializando, há um aumento da fecundidade, porque no mundo rural as mulheres amamentavam os filhos, o que era impeditivo de nova gravidez, e quando começaram a trabalhar, entregavam os filhos às amas, engravidando mais vezes, pelo que se deu uma explosão demográfica na transição do século XIX para o século XX. E, ainda hoje, a zona do Norte de Portugal é a mais jovem da Europa (com Felgueiras à cabeça)".
Será, pois, por comparação com o passado mais pou menos remoto e glorioso de Portugal que Amorim exprime grande inquietação face ao futuro do país, não só no plano económico - como será possível sustentar as reformas quando a população beneficiária for maior do que a contribuinte? - mas de forma mais lata. "É na juventude é que está a criatividade, a força, e uma população mais envelhecida terá mais difificuldades de afirmação", diz, sublinhando que "sempre que houve um excedente populacional, deu-se um salto evolutivo. Os Descobrimentos (séculos XV-XVI), por exemplo, devem-se em larga medida à força reprodutiva dos portugueses do Norte do país".
Parece que a salvação radica na mobilidade populacional, designadamente a injecção de sangue novo por via da imigração. De resto, os nascimentos de bebés de mães estrangeiras representam, já, mais de 9,5% da taxa de natalidade nacional. Mas, para equilibrar o saldo natural, será necessário muito mais. O que pode não acontecer. Por um lado, porque a crise económica e o atraso efectivo de Portugal face à maioria dos países europeus o coloca como pouco atractivo. As estimativas da população residente no ano passado, publicadas INE, mostram que o número de residentes que, em 2008, optou por abandonar o país mais do que duplicou em relação aos valores de 2001. Face à taxa de desemprego de 8,9% (dados oficiais do INE, relativos ao primeiro trimestre), 20357 pessoas decidiram abandonar o país para viver e trabalhar no exterior em 2008, mais de 10 mil do que há quatro anos.
Por outro lado, as zonas de origem dos imigrantes estão a padecer também, elas próprias, do envelhecimento populacional a par da melhoria de qualidade de vida, como é o caso dos países asiáticos. "Até meados deste século, a população mundial continuará a crescer, mas depois deverá diminuir. Portanto, até que ponto é que essas comunidades continuarão a ter a capacidade de fornecer gente? Porque a tendência já é, com tempos diferentes e ritmos diversos, uma progressiva diminuição do ritmo de natalidade. Na China, por exemplo, já começa a ser problemático", assinala Moreira.
Afinal, foi o que aconteceu a Portugal noutra época: "Nos anos de 1960, a Europa também precisou de mão-de-obra para fazer face às necessidades geradas por um grande crescimento económico. Só que, nessa altura, o Sul do continente, e designadamente Portugal, constituía a reserva demográfica da Europa. Ora, hoje, isso já não acontece, bem pelo contrário: não só temos a diminuição da natalidade, como já não conseguimos atrair gente".
Nestas condições, é natural os governos tentarem encontrar soluções domésticas que estimule a vontade reprodutiva dos governados. No entanto, tudo se conjuga para contrariar esse ensejo. Desde logo, a crise mundial que se instalou, e que tardará, segundo as previsões dos organismos internacionais, e até do Banco de Portugal, a deixar Portugal mais do que noutrsas paragens.
Por ocasião do 1.º Congresso Nacional da Maternidade, que decorreu em Março último em Lisboa, alguns dos especialistas cogitaram que a ligeira subida da taxa de natalidade registada em 2008 é "uma tendência que não vai continuar em 2009 devido à crise económica".
A alta-comisária da Saúde, Maria do Céu Machado, justificou o prognóstico reservado: "Sejam quais forem as políticas de incentivo à natalidade é preciso que, sobretudo, os casais jovens tenham uma certa segurança no trabalho", disse. "Os filhos são desejados mas também programados, e não me parece que este seja um ano muito propício para ter filhos", acrescentou a pediatra.
Sucede, porém, que por mais generosos que sejam os apoios à natalidade - e se em Portugal, o PS propõe, para a próxima legislatura, um subsídio de 200 euros a cada para criança, a depositar numa conta a prazo até aos 18 anos, em Espanha o Governo atribui 2500 euros... -, as medidas, neste campo específico, não costumam ter efeitos imediatos. É que, tipicamente, a gestação das crias humanas demora nove meses; e as gerações uma quarto de século a afirmar-se. Ora, nestas condições, se hoje somos poucos, amanhã seremos menos. E, quem sabe, se um dia não estaremos, como referia o economista João César das Neves à Focus, "em vias de extinção enquanto entidade social"?
Sem comentários:
Enviar um comentário