A contingência da morte é a mais niveladora da condição humana - ninguém lhe escapa. Tal fatalidade não atinge todos, porém, do mesmo modo, e o temporal na Madeira, que ceifou 42 vidas no dia 20 - mas ainda há oito desaparecidos -, é paradigmática.
Mais de metade dos óbitos, tal como a esmagadora maioria dos 600 desalojados pela intempérie, devem-se a gente de parcos recursos. Os residente nas favelas incrustadas nas margens das ribeiras que se precipitam no Atlântico ou nas casas assentes em terras movediças, como nas freguesias do Monte e de Santo António.
No Funchal rural, na zona Verde que devia estar vedada à construção, a escassez de recursos e a pobreza de muitos ilhéus garantem a repetição da tragédia caso a violência dos elementos fustigue de novo o jardim do Atlântico. Ali, pontifica o luto; na cidade, a prioridade é reconstruir. Num e noutro lado, os danos ascendem a 1,4 mil milhões de euros.
Graças ao esforço de autoridades várias, coordenadas pela Protecção Civil, e ao voluntariado de muita gente anónima - desde grupos organizados, como os escuteiros, até contributos individuais - a limpeza da Zona Velha do Funchal, com ruas calcetadas de rebolos até ao peitoril das janelas, começou logo pelos alvores de domingo. Entre lojas destruídas pelo caudal lamacento que desaguou na baixa, a galocha e o oleado, a pá e o balde ataviaram centenas de pessoas, ufanas entre a azáfama das 110 máquinas e 250 camiões que trabalharam, ininterruptamente, para devolver a dignidade, ou tão só tornar transitáveis, tantas das artérias urbanas e muitas mais das zonas altas da ilha, cujo alcatrão resvalou encostas abaixo. Arrastando, nessa queda, árvores, carros, casas e pessoas.
A falha na rede móvel que sucedeu à tragédia dificultou as operações de resgate, e os múltiplos rumores gerados entretanto - no desencontro contabilístico dos óbitos - agravaram o desnorte inicial. Compilados, geraram uma narrativa, tão fantástica como macabra, centrada no estacionamento do Anadia Shopping. Quando se temia que houvesse ali gente sepultada nos dois pisos subterrâneos, muitos davam-nos já como vasto cemitério. Justificavam-no com um carro, largado pelo pânico, na rampa de saída, travando a fuga às demais viaturas; e que tais cadáveres teriam sido retirados em segredo, disfarçados nas operações de limpeza do talho do Pingo Doce, no piso térreo do Centro Comercial devastado. Nada disso se verificou, felizmente.
O funesto repetiu-se para lá do Funchal: na Ribeira Brava faleceram sete pessoas, seis delas sepultadas no Pomar da Rocha. Em Santa Cruz, a morte colheu cinco, e, em Câmara de Lobos, quatro. Na Calheta, menos uma, e no Machico, menos batido pelo temporal, um madeirense morreu. Alheios à tragédia, os turistas só saíram dos hotéis, na zona do Lido, com o regresso do sol, dois dias após a tempestade. Para excursões inusitadas, pelo meio do caos, numa ilha que julgavam parasidíaca e se tornou, subitamente, num inferno de lama.
Jornal de Noticias
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