Como é possível que um cargueiro de 94 metros tenha andado no mar mais de três semanas sem que navios de guerra o conseguissem encontrar? E que poderá estar por trás do empenho da armada russa?
Parece ter chegado ao fim a saga do "Arctic Sea", o cargueiro que, pouco depois de deixar o porto finlandês de Pietarsaari (ou Jakobstad, em sueco), desapareceu dos sistemas de identificação do tráfico marítimo, com 15 tripulantes russos a bordo, depois de um misterioso assalto, para vir a ser descoberto, passadas mais de duas semanas, ao largo de Cabo Verde. A tripulação está a salvo, os supostos sequestradores detidos, e o navio segue para o porto russo de Novorossisk, no mar Negro.
A Rússia desenvolveu um enorme esforço, envolvendo a Marinha de guerra, a aviação e os serviços secretos, para capturar o Arctic Sea que, teoricamente, não lhe pertence. O navio é gerido por uma empresa finlandesa, a Solchart Management Ltd, propriedade de três russos baseados na Finlândia, está registado em Malta, e transportava um carregamento de madeira finlandesa, avaliado em 1,3 milhões de euros, destinado à Argélia. A operação de resgate foi apresentada ainda como um bom exemplo de colaboração entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atântico Norte (OTAN).
O que é que o navio poderia ter de tão importante e qual o objectivo dos assaltantes? Será que as investigações poderão dar uma resposta objectiva a estas perguntas, ou tentaram deixar que se desvaneçam com o tempo?
Toda esta epopeia poderia ter passado despercebida pelo público caso o redactor de um portal pouco conhecido da Internet, alertado pelos familiares dos marinheiros que constituíam a tripulação do cargueiro, não tivesse dado o alarme, passados mais de dez dias do estranho "desaparecimento" do Arctic Sea.
Epopeia de um navio fantasma
No dia 8 de Agosto, no portal Boletim Marítimo - Sovfracht, aparece um artigo do redactor chefe, Mikhail Voitenko, em que transparece um pedido de socorro por parte dos familiares dos marinheiros. "O cargueiro Arctic Sea, com tripulação russa, atacado no Báltico, desapareceu sem deixar pista no Atlântico... ao largo de Portugal". O barco, que tinha deixado Pietarsaari a 22 de Julho, deveria ter chegado ao seu destino, o porto de Bedjaia, na Argélia, a 4 de Agosto, e Voitenko dizia que desde o dia 28 de Julho, não havia comunicações com o navio, nem dados sobre a sua localização, nem os familiares nem o armador sabiam nada.
"Já procurámos em todos os AIS (Sistema automático de identificação de navios), e não há pistas", escrevia Voitenko. O Boletim Marítimo referia que o Arctic Sea tinha sido alvo de "um misterioso assalto no mar Báltico no dia 24 de Julho", perto da ilha de Gotland, possivelmente em águas territoriais suecas, do qual "só se soube uma semana depois", levado a cabo por "bandidos que, num fraco inglês, se apresentaram como polícias", e que procuraram alguma coisa durante 12 horas, tendo abandonado depois o navio.
Intrigado pelo estranho assalto, Voitenko adiantava que o Arctic Sea poderia transportar "contrabando ou até mesmo narcóticos". Voitenko levantava a hipótese de que o sistema AIS pudesse ter sido desligado ou desmontado e, eventualmente, montado noutra embarcação.
Perseguição do cargueiro
A partir do alarme lançado por Voitenko, na peugada do Arctic Sea levantaram-se autoridades marítimas e órgãos de comunicação. Começaram a aparecer informações contraditórias. O Arctic Sea teria contactado a guarda-costeira britânica em Dover no dia 28 de Julho e teria sido detectado pelas autoridades marítimas francesas, em Brest, no dia 30 desse mês. Depois, o navio foi visto em San Sebastian (desmentido) e teria sido perseguido no Mediterrâneo por um navio de guerra russo (também desmentido). A agência Itar-Tass cita fontes da guarda-costeira britânica, de acordo com as quais o Arctic Sea teria sido avistado pela última vez, no dia 2 de Agosto, pelo piloto de um avião português, "na latitude do Porto". Segundo outras fontes, o cargueiro teria sofrido um segundo assalto ao largo da costa portuguesa. No dia 14 de Agosto o Arctic Sea foi avistado próximo de Cabo Verde.
A notícia parecia ter origem na guarda-costeira cabo-verdiana, mas fonte do Ministério da Defesa referiu à agência Itar-Tass que "não confirmava nem desmentia a presença desse navio nas nossas costas". No dia seguinte, o Arctic Sea, oficialmente, já não estava naquelas paragens. "Encontrei-me com os governantes do país (Cabo Verde), em particular com o chefe do Estado Maior da Forças Armadas, Fernando Carvalho Ferreira, o qual não me confirmou a informação de que o navio tivesse sido descoberto", referiu o embaixador russo na Praia, Alexandre Karpuchin, contactado pelo canal de televisão noticioso Vesti.
Entretanto, Voitenko volta a fazer uma descoberta. O equipamento AIS do Arctic Sea voltou a emitir sinal e as coordenadas indicavam que estaria no Golfo da Biscaia, mas a emissão não chegou a durar uma hora. Mais tarde, Voitenko afirmou estar convencido de que se tratava de um falso sinal emitido pelo equipamento do Arctic Sea instalado sobre outra nave ou de outro equipamento em que haviam sido introduzidos todos os dados do navio desaparecido. As autoridades francesas negaram a presença do Arctic Sea e depois admitiram que, no local do sinal, estavam três navios de guerra russos.
Entretanto, a Polícia finlandesa confirma a existência de um pedido de resgate de 1,5 milhões de euros, para libertar o navio e a tripulação. Finalmente, no dia 17 de Agosto, o contratorpedeiro russo "Ladni" chega a Cabo Verde, encontra rapidamente o Arctic Sea e, como referiu o ministro da Defesa russo, Anatoli Serdiukov, liberta o navio "sem disparar um tiro".
Perder e encontrar um navio
Um dos enigmas que permanece é a ausência do alarme por altura do assalto. Um dos elementos da tripulação afirmou à televisão russa que houve uma tentativa de mandar um SMS, alertando que o navio estava a ser sequestrado e que a resposta foi um telefonema a perguntar se era verdade. No entanto, segundo alguns especialistas em transportes marítimos, um navio tem várias possibilidades de dar alarme em caso de sequestro.
"Há três botões de alarme (em sítios diferentes), que dão imediatamente o sinal através de satélite", explica Alexandre Krasnochtan, presidente do Sindicato dos Marinheiros do Norte da Rússia. O facto é que a notícia do assalto, confirmada pela Polícia sueca, foi sabida só no dia 31 de Julho, quando o navio, provavelmente, se encontrava já em pleno Oceano Atlântico.
Segundo Dmitri Rogozin, representante diplomático da Rússia junto da OTAN, as informação fornecida ao longo deste processo teve que ser controlada. Que a Aliança participou nas operações no âmbito da localização do navio, foi dado a conhecer também por Rogozin, que afirmou que o "sistema de monitorização marítima, que ajuda a OTAN a seguir os movimentos dos navios" tinha sido utilizado para "levar direitos ao alvo os nossos navios de guerra".
Também o centro de controle de navegação, baseado em Malta, quando estavam concluídas as operações fez saber que o Arctic Sea tinha sido sempre seguido, ao longo de toda a sua misteriosa viagem.
Navio barato e carga de pouco valor
Se alguém me dissesse que tinha uma equipa de "rambos" capaz de assaltar um navio e me pedisse conselho, certamente não lhes proporia um assalto a um cargueiro de madeira no Mar Báltico, o sítio mais difícil, depois do Canal da Mancha. Podia ser no Atlântico, um transportador de contentores, de automóveis... uma coisa que tivesse o valor de, pelo menos, algumas dezenas de milhões de dólares", comentou Mikhail Voitenko.
O carregamento do Arctic Sea estava avaliado em cerca de um milhão de euros. Entre as três versões que o especialista em transportes marítimos analisa, a hipótese do simples assalto parece-lhe absolutamente ilógica. "Para quê escolher um dos barcos mais baratos com um carregamento de pouco valor, num sítio onde até os telemóveis funcionam?" questiona Voitenko.
Outra possibilidade é que poderia haver questões envolvendo directamente a actividade da companhia "Solchart", como chantagem ou um ajuste de contas comercial; mas, na sua opinião, "o mais certo é que, em vez do dinheiro que me deviam, acabo por receber uma sentença pesada". Voitenko é do parecer que se tratou de uma "operação especial", que tinha por detrás os serviços secretos de algum país, mas mostra-se relutante em admitir que poderia ser da Rússia. Considera que o assalto foi muito bem pensado porque "havia um único sítio e um único momento, em que era possível levá-lo a cabo".
O que se poderia pretender com essa "operação especial", é mais difícil de especificar. Voitenko inclina-se para uma hipótese também levantada pela jornalista Iulia Latinina. Pode ser uma forma de dizer "alto" a um esquema que era executado regularmente. "Não se tratava de um transporte isolado... mas, provavelmente, de uma rota regularmente utilizada, percorrida há muito tempo e com confiança, e agora fecharam-na", afirma Latinina, segundo a qual é preciso não esquecer que o navio esteve em reparação, durante duas semanas, no enclave russo de Kaliningrado, antes de ir carregar à Finlândia.
Quanto ao que se poderia transportar nessa "rota regular", Iulia Latinina adianta "qualquer coisa de nuclear para potências pacíficas, como a Síria ou o Irão". Provas não há, por isso, a este ponto pode-se dar largas à imaginação ou, então, alimentar esperanças de que, no futuro, as autoridades russas possam tornar públicos os resultados autênticos das investigações que dizem estar em curso.
Sem comentários:
Enviar um comentário