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Radio Viseu Cidade Viriato

domingo, 16 de agosto de 2009

Debate entre formas de governação entronca na necessidade de pensar a qualidade cívica dos portugueses...

Vai nu o rei ou despida a República? A aproximação de 2010 tem servido para que os monárquicos, mesmo que de forma inconsequente ou anedótica, coloquem na agenda a questão do sistema de governo em que vivemos.


Ou do regime que temos, embora o uso da palavra não seja consensual, na medida em que a democracia parlamentar tanto existe com soberanos assim nascidos como com presidentes assado eleitos, passe o também inconsequente jogo de palavras. Importará perceber, entre bandeiras arriadas e outras pessegadas, se os anseios monárquicos têm crescido ou se o brio republicano tem murchado. Mas não é fácil.


Essencial será esclarecer, logo à partida, equívocos históricos ou laivos demagógicos que se associam a acções como a que foi levada a cabo por elementos do blogue "31 da Armada" nos Paços do Concelho de Lisboa, trocando o estandarte da cidade pela última bandeira nacional da dinastia de Bragança. Argumentam que a República foi proclamada contra a vontade da população, quando, em verdade, o prestígio da monarquia estava a cair de maduro. Associam ao republicanismo todos os males que se abateram sobre o país, no tempo da I República, quando até historiadores de tendência monárquica salientam que toda a instabilidade era conjuntural e inevitável, havendo ou não mudança de regime.


Mas os monárquicos de maior peso desligam-se da vertente "agitprop", prometendo germinar a semente do debate. De um lado, o elogio da unidade nacional em torno da figura régia, do outro a ideia de que só com a eleição do chefe de Estado há plena democracia. Interessarão estas coisas ao povo? Em crise cívica que tantos apontam, há sempre sentido no pessoano "falta cumprir-se Portugal".


Convicções à parte, as monarquias, no século XXI, fazem tanto sentido como as repúblicas, mas nem todas as monarquias têm o mesmo sentido. Se cingirmos a observação às cabeças coroadas europeias, vemos realidades muito distintas. Há casos como o de Espanha ou da Bélgica, em que os reis surgem como factor unitário entre nações num mesmo Estado. Há o Reino Unido, onde existe forte movimento republicano e onde a realeza saltita de escândalo em escândalo, sendo vista por muitos como uma entidade parasitária. Há casos como os da Suécia e da Noruega, países de avançada democracia onde a realeza é consensual e amada (na Suécia, apesar de a dinastia reinante ser estrangeira - Bernadotte - e inventada por Napoleão Bonaparte; na Noruega, enquanto marco de uma unidade anti-sueca).


Mas para que serve um rei? Armando Marques Guedes, docente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, admite que "é justamente pela não igualdade entre o rei e o cidadão que a igualdade entre os cidadãos se torna possível". Por outras palavras, em tese, a monarquia criará "uma desigualdade, com um caso exemplar, que é único", numa relação para a qual Marques Guedes encontra paralelo nas chamadas religiões do Livro: "Somos iguais, no sentido em que somos filhos de uma entidade superior".


Claro que ser monárquico não entronca exclusivamente nesse sentimento de igualdade balizada pelo exemplo. É um sistema de governo que atrai, também, os que sonham com o controlo total das nações. Oliveira Salazar, a quem a democracia parlamentar causava assumida repugnância, via como realização pessoal a possibilidade de ser o ministro de um monarca absoluto, fascinado com aquilo a que a historiografia chama "Ancien Régime", ou seja, o absolutismo régio anulado pelos ideais iluministas e pelas revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX. Daí que Marques Guedes, que nem é um combatente da causa monárquica, rejeite a ideia de que os reis tenham poder político, fazendo-o de forma ainda mais liminar ante a possibilidade de um poder totalitário.


Entre os defensores da monarquia haverá, portanto, um pouco de tudo. Será um saco de gatos em que, a par dos que vêem na figura régia mera referência de estabilidade nacional (face a um problema que, nota Marques Guedes, é potenciado pela diluição da identidade nacional que a globalização propicia), há, também, os que apenas pretenderão recuperar o peso de uma aristocracia (seja de sangue ou de mérito) que hoje só faz sentido na imprensa cor-de-rosa.


Nada disto traça, porém, o panorama dos monárquicos portugueses, ou seja, não será ainda perceptível se falamos mais de intelectuais, se falamos mais de amantes da tauromaquia e da caça, se falamos mais de pessoas que tomam de assalto edifícios públicos para hastear bandeiras. António Reis, historiador e grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, obediência maçónica que está envolvida de corpo e alma nas comemorações do centenário da República, diz que episódios como o da Câmara de Lisboa dão a ideia de que "os monárquicos estarão reduzidos a meia dúzia de pândegos". Não lhe parece, por outro lado, que haja uma crise dos valores republicanos, embora acredite que o centenário será uma oportunidade para estimular a apetência dos cidadãos pela participação cívica. "A República é uma coroação da democracia", afirma. E, embora reconheça a existência de monarquias democráticas, vinca que essas "não levam os princípios democráticos às últimas consequências, ou seja, à eleição do chefe de Estado".


Desde 1910 a viver numa República, e existindo actualmente no mais longo período de vivência democrática alguma vez experimentado pelo país, os portugueses encararão a nossa forma de governo como algo que decorre da natureza, pouco se preocupando com disputas académicas de virtudes e defeitos, estimuladas pelos que se põem de um e de outro lado da barricada. Certo é que, perante essa confortável apatia e perante a perda de pujança da República, materializada em escândalos, em desconfiança ou no notório decréscimo qualitativo das elites políticas (ou das elites partidárias, para sermos mais precisos), os monárquicos têm uma ocasião soberana para dar visibilidade aos seus pontos de vista. Daí que aos republicanos compita, supondo-se que querem defender esse tipo de regime, trabalhar com mais substância no sentido de incrementar o empenho cívico da generalidade dos cidadãos.


Dos objectivos da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, criada pelo chefe de Estado, constam dois pontos muito pertinentes para este debate: "mobilizar os mais novos para a participação cívica"; "aprofundar o debate em torno da ética republicana do século XXI". Em verdade, além das diferenças já explanadas, como a ideia de igualdade sem derivas aristocráticas (o privilégio de nascimento é uma aberração, do ponto de vista republicano) o conceito de "ética republicana" não é mais do que um aperfeiçoamento da ética democrática. Já quanto à necessidade de mobilizar os mais novos para a participação cívica, é a todos os títulos premente, na medida em que uma sociedade acrítica é pasto para as mais atrozes arbitrariedades.


Diz Armando Marques Guedes que "os partidos perderam o controlo da situação em Portugal", pelo que "os monárquicos aproveitam". Mas o essencial do problema estará na circunstância de, para a maior parte dos portugueses, a governação ser "uma coisa pessoal": "Com excepção das elites mais esclarecidas, vêem no chefe, no padre, no pai ou no político uma entidade salvífica, algo que considero perigosíssimo, por ser muito próximo do poder monárquico despótico".


Essa "expectativa messiânica cíclica no sentir comum português", entende Marques Guedes, releva da circunstância de haver, neste país, três tipos de legitimidade: democrática (sem necessidade de explicação), técnica (assente na excelência em determinadas competências) e tradicional (aquela que, automaticamente, continua ser dada, por exemplo, a grandes famílias, com ligação histórica aos círculos do poder). "Normalmente, esquecemos que há essa legitimidade tradicional, e a verdade é que a República não conseguiu produzir essa legitimidade", diz, notando que, se houvesse democracia directa (ou seja, se cada um votasse em quem lhe apetecesse no universo dos cidadãos nacionais), a escolha recairia em "autoridades tradicionais de natureza 'monárquica' e porventura despótica" (enquadrar-se-ia aí a consagração de um ou outro dirigente desportivo).


A estrutura familiar tradicional ou as peculiaridades do Catolicismo no nosso país serão chaves para que impere ainda, entre nós, "a submissão ao Estado e às benesses do Estado". Mas o factor preponderante para que assim aconteça será a ausência de uma cultura cívica viva e dinâmica, algo que transcende o debate em torno de sistemas de governação. Mais importante do que a interdição de referendar a monarquia (óbvia numa Constituição republicana) é a qualidade do país que queremos, directamente proporcional à qualidade cívica dos cidadãos.


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