Os acontecimentos recentes à volta do caso da Alexandra, a menina de seis anos que foi abruptamente devolvida à mãe, que habita na Rússia, voltaram a problematizar as medidas de protecção de menores estabelecidas na Lei portuguesa.
Neste momento, importa aferir a eficácia de respostas como a de 'acolhimento familiar ' ou como a de 'confiança a pessoa idónea'. Alexandra, cuja retirada dos cuidadores chocou os portugueses, é um caso no meio de vários outros onde as semelhanças não são meras coincidências.
Importará, portanto, perguntar, por exemplo, se estas medidas - que a lei dita provisórias - são desadequadas ou se, pelo contrário, a desadequação está apenas na forma como são aplicadas já que, não raras vezes, se eternizam sem o devido acompanhamento, criando ilusões, falsas expectativas e mágoas perenes.
Começando pelo princípio, podemos questionar, por exemplo, se não haverá uma natural tensão entre a expressão 'família de acolhimento' e a palavra 'profissionalizante'? O que é um família profissional? É uma família que cuida, mas não pode amar? Que deve amar, mas sem demasia? Aferem-se assim os sentimentos? Pesam-se aos quilos? Já agora, onde acaba o papel da pessoa idónea a quem foi confiado um menor? E à criança, diz-se o quê? Como se explica o carácter provisório da família que julga e ama como sua?
Por outro lado, urge confrontar a realidade e perguntar: não será melhor a criança estar , ainda que provisoriamente, numa estrutura em tudo semelhante ao meio familiar do que numa instituição?
Acima de tudo, que realidade é esta que deixa uma criança confiada a uma família de acolhimento, ou a pessoa idónea, anos a fio - sem o acompanhamento necessário , sem a devida preparação para o regresso à família biológica (que é a génese destas medidas), ou para outra solução - para depois a arrancar das mãos daqueles com quem desenvolveu as únicas relações estruturantes da sua vida?
Que abandono é este a que votamos assunto tão sério substituído depois por sucessivos circos mediáticos?
"É evidente que as vinculações afectivas são estabelecidas. Sempre. Independentemente da formatação jurídica. A criança, por exemplo, não vai olhar para aquelas pessoas como prestadoras de um serviço ou cuidadoras temporárias. É um meio natural de vida. Ponto", começa Manuel Sarmento, especialista em sociologia da infância.
Por serem medidas de protecção que simulam um meio natural de vida, criando laços afectivos - que se solidificam com o tempo - e porque a qualquer momento a criança pode ser retirada, impõe-se questionar a eficácia destas soluções. Não raramente ouvimos técnicos sociais dizerem que não se deve aplicar estas respostas a uma criança muito pequena, porque ela não tem condições para compreender que são provisórias, por muito que se arrastem.
Outros especialistas, contudo, advogam a importância de crecer com modelos bem definidos. "A entrega a uma família de acolhimento ou a pessoa idónea são alternativas viáveis, sim. É preferível isto do que entregar a criança a uma instituição. Tudo o que se aproxima do meio familiar é melhor", advoga o psiquiatra Daniel Sampaio. Paula Cristina Martins, psicóloga da infância e professora no Instituto de Estudos da Criança, explica que crescer numa família é deveras importante para "o desenvolvimento global, neurológico, cognitivo ou motor". "As crianças precisam de relações estruturantes para se desenvolverem a vários níveis. Precisam de modelos, de uma gramática".
De facto, estudos como os que foram publicados na revista científica "Science", há um ano, garantem que as crianças retiradas a lares e colocadas em meio familiar, antes dos dois anos, apresentam melhorias significativas em pouco tempo.
As crianças necessitam, portanto, de relações estruturantes e constroem-nas junto de quem delas cuida. Às vezes, são as únicas relações estruturantes que estabelecem. Só que, num ápice, por decisão judicial, podem ser obrigadas a perdê-las. Alexandra, por exemplo, foi para Rússia. Passou a maior parte da sua curta vida com a família a quem foi entregue e, repentinamente, foi retirada e enviada para a Rússia. Dificilmente manterá contacto com aqueles que dela cuidaram durante anos, com aqueles que ama.
"A situação em que esta criança foi retirada foi deplorável", defende a psicóloga Paula Cristina Martins. Basicamente, "uma criança não pode ser arrancada à força dos cuidadores. Estas coisas têm que ser evitadas", corrobora o psiquiatra Daniel Sampaio.
Nos Estados Unidos da América, as famílias que acolhem, por exemplo, podem requerer o direito à manutenção dos laços afectivos. Não há um corte abrupto. Por outro lado, a sua tipologia é mais diferenciada.
"Há integração em famílias de acolhimento por curto, médio e longo prazo. Relativamente à última verifica-se quando um jovem tem vínculo forte com a família biológica mas não pode viver com ela. Nesse caso, ficará numa família de acolhimento até ser adulto. O jovem tem vinculação às duas famílias", explica Paula Cristina Martins, acrescentando que "em Portugal, com a regulamentação das famílias de acolhimento (Decreto-Lei 11/2008) perdeu-se uma boa oportunidade de criar uma tipologia mais diferenciada".
O Instituto de Apoio à Criança (IAC) coloca a tónica, sobretudo, na idade. Há um ano, entregou na Assembleia da República uma proposta que até hoje não recebeu qualquer retorno. O documento vai no sentido de institucionalizar uma criança muito pequenina, desde que haja perspectiva de reintegração na família biológica. O caso de Alexandra poderia ser um bom exemplo. Para o IAC, a integração em meio familiar (familia de acolhimento ou confiança a pessoa idónea) de uma criança muito pequenina pode ser prejudicial e criar uma mágoa profunda aquando da sua retirada, tanto mais que em Portugal estas medidas de protecção arrastam-se no tempo, fortalecendo os laços.
Daniel Sampaio e Paula Cristina Martins argumentam que não há qualquer razão para uma criança - mesmo de tenra idade - não estar em ambiente familiar, desde que a situação seja controlada. "Tem que haver por parte dos técnicos sociais uma avaliação periódica, rigorosa e célere. Esta é uma medida que tem que ser, de facto, provisória", diz Daniel Sampaio. Por outro lado, relembra Paula Cristina Martins, "sendo estas respostas temporárias, os seus protagonistas têm que ter consciência disso e têm que preparar a criança para o facto de um dia alguém as vir buscar. E no caso de haver perspectiva de regresso à família biológica, esta não deve excluida por parte da família que acolhe a criança", defende.
A perspectiva do sociólogo Manuel Sarmento é semelhante, isto é, "não há razão para uma criança não viver com uma família, desde que esta solução seja tratada noutra dimensão". O sociólogo partilha da opinião de Daniel Sampaio e Paula Cristina Martins acrescentando que os laços com a família a quem esteve confiada devem manter-se.
No fundo, o que defendem é que, no caso de haver perspectiva de regresso à família biológica, este não seja feito em guerra aberta, estrangulando a criança entre sentimentos de posse e falsas expectativas goradas. "Se as coisas forem bem feitas, não tem que ser uma drama até porque a vinculação de uma criança não é exclusiva. Ela pode fazer essa vinculação a várias pessoas", defende Manuel Sarmento. Ou seja, devendo manter o contacto com a criança, a família onde ela esteve tem que ter a consciência de que nunca houve a promessa de que ela ficaria ali para sempre.
Em suma, estas têm que ser medidas mesmo muito provisórias, com grande acompanhamento e avaliação sistémica, com solução célere e onde a transição deve ser feita progressivamente. No caso de haver hipótese de regresso à família biológica, esta nunca deveria ser excluida por aquela que acolhe a criança. Aquando do seu regresso deve manter-se a relação com a que a acolheu. "A criança é um elo de ligação. Não pode diabolizar-se um dos lados", reitera o sociólogo.
Sucede que não raras vezes o que acontece é precisamente o contrário. As situações provisórias eternizam-se, criam-se afectos profundos, interrompem-se afectos, cria-se grande circo mediático, um dos lados é diabolizado, atacam-se os juízes, aparecem apresentadoras de televisão a perguntar à criancinha com quer ficar, e a criança fica no centro de uma guerra emocional onde ninguém tem grande razão, não fossem os afectos solidificados e melindrados serem razão suficiente para se compreender certos actos impróprios, como expor de forma violenta uma criança na televisão.
"O grande problema é o tempo. As pessoas que acolhem sabem que não acolhem para sempre. No caso das famílias de acolhimento, por exemplo, é assinado um documento em como aceitam não ser candidatas à adopção. Só que com o passar do tempo - porque estas coisas arrastam-se e não deviam - as pessoas desenvolvem expectativas, apegam-se", explica Maia Neto, membro da Comissão Nacional de Protecção de Jovens e Crianças em Risco e um dos redactores do Decreto-Lei 11/2008.
Este decreto consagra a preparação de um plano de intervenção, o acompanhamento da situação, a revisão da medida e a cessação do acolhimento. Então, o que é que falha? "Falha a gestão racional dos meios. É preciso separar os processos urgentes dos urgentíssimos e estes, diz o bom senso, são urgentíssimos. Tem que haver, por exemplo, um maior rigor na selecção das famílias que acolhem o menor e tem que haver um acompanhamento muito apertado. A criança nunca deveria estar nesta situação provisória mais de um ano", defende Maia Neto.
Pois é, mas têm os técnicos sociais meios para levar a cabo este trabalho? "É preciso transferir mais dinheiro para a protecção de menores", conclui.
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