A ministra da Saúde admitiu rever a lei sobre prescrição de medicamentos por substância activa, em nome dos interesses do doente. Mas os médicos mantêm que há uma relação de confiança com os fármacos de que não abdicam.
A polémica poderia parecer acalmar com a decisão ontem tomada pela Associação Nacional de Farmácias (ANF): suspendeu a troca dos medicamentos de marca prescritos por genéricos mais baratos, mesmo que o médico não a autorizasse. E fê-lo porque a ministra insistiu que não pagaria o valor das comparticipações sempre que uma receita revele "irregularidades". Isto é, a dispensa de um medicamento diferente do receitado.
Mas a hipótese ontem admitida por Ana Jorge de rever a legislação que proíbe a troca sem ordem médica pode alimentar um conflito com os médicos. O argumento - já repetidamente aduzido pela Ordem dos Médicos - é o da relação de confiança com os medicamentos e os laboratórios.
"Os médicos prescrevem genéricos à medida que têm confiança neles" médicos de família Bernardo Vilas Boas, fundador da Associação de Unidades de Saúde Familiar e dirigente da Federação Nacional dos Médicos. E ter confiança significa verificar que o efeito é o desejado, que não há reacções secundárias, que o doente adere à terapêutica (existe o efeito placebo, em que um doente só sente efeitos quando toma um fármaco que conhece) e que há "informação acerca da credibilidade do fabrico e do controlo de qualidade".
Ora, garante Vilas Boas, a informação por parte da Autoridade do Medicamento (Infarmed, que aprova os medicamentos) "é quase nula". E se, com alguns fármacos, os médicos sabem onde e como são produzidos, com outros não é assim. "Quando há centenas de marcas de genéricos, surgem nomes de um dia para o outro e criam-se dúvidas e insegurança. Ainda hoje me apareceram nomes desconhecidos. O Infarmed não promove informação junto dos profissionais".
O médico admite a influência dos laboratórios que apoiam acções de formação - que deveria competir ao Estado, diz -, mas lembra que isso também acontece com a indústria de genéricos. A lei "não deve mudar". "O que é preciso é um trabalho das autoridades competentes que demonstre que há qualidade e controlo dessa qualidade".
Do seu lado, o director do IPO de Coimbra, Manuel António, admitiu que os médicos não tenham tanta confiança em certos genéricos como em medicamentos de marca ou outros genéricos em que reconhecem um historial de bons resultados. E, como Vilas Boas, assume haver melhor informação sobre os fármacos de marca. Mas acredita que a prescrição de genéricos vai aumentar: "A confiança vai-se estabilizando e o médico vai aderindo". Em "igualdade de confiança, o médico tem obrigação de receitar o que for mais barato", acrescentou, o bastonário da OM.
Médica, Ana Jorge admitiu, contudo, rever a lei. "Já tem algum tempo e muitas vezes a aplicabilidade da lei cria-nos algumas dificuldades", disse, adiantando que terá de discutir qualquer alteração com o Infarmed. Mas Ana Jorge insiste que "a decisão terapêutica é um acto médico" e que o clínico "é responsável por tudo aquilo que seja o tratamento do doente". Defende, por isso, a negociação entre médico e doente e diz (face à proposta de dar a decisão ao paciente, feita pelo fundador do Serviço Nacional de Saúde, o advogado António Arnaut) que está em causa "a segurança" do doente. Isto sem questionar a qualidade dos genéricos.
Associação de Farmácias recua
Depois de dias de braço-de-ferro com o Ministério da Saúde, a Associação Nacional de Farmácias (ANF) suspendeu a campanha de substituição de medicamentos de marca por genéricos mais baratos sem autorização do médico. Diz João Cordeiro que a ANF "deixou de ter condições económicas para continuar a campanha", já que esta "deixou de ser apoiada pelo Ministério da Saúde". Isto quando se comprometera a apoiar financeira e juridicamente as farmácias na aplicação da medida e admitira pagar as comparticipações recusadas pelo facto de as facturas não corresponderem às receitas. Ora, essa é justamente a penalização que a ministra garantiu vir a acontecer em caso de receitas com irregularidades. "As farmácias estão empenhadas em dispensar os medicamentos genéricos mais baratos. Não o podem continuar a fazer porque o Ministério da Saúde prefere pagar mais pelos medicamentos de marca mais caros do que pagar menos pelo medicamentos genéricos mais baratos", lamentou o presidente da ANF. Que prometeu recorrer à Justiça se o ministério não pagar as comparticipações às farmácias. Diz que a medida defendida por Ana Jorge é "administrativa" e não política nem jurídica, porque "não existem fundamentos políticos, nem jurídicos" para rejeitar a medida. Que em seis dias, garante, permitiu aos doentes poupar 112 mil euros e ao SNS 93 mil euros. Num ano, a poupança seria de 120 milhões.
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