Foi a primeira vez de Joana. Nunca antes lhe tinham feito uma serenata. Quis o destino que a estreia fosse mesmo à porta do café conhecido por nome de parasita pertencente à família dos Pediculídeos.
O Piolho. Fica ali na Praça de Parada Leitão, no Porto. A meia dúzia de passos dos Leões. Qualquer dúvida é só perguntar a um estudante da Universidade do Porto. O Piolho, baptizado como Âncora d'Ouro há quase 100 anos, é o principal centro de reunião de doutores e caloiros da Academia portuense, a maior do país. São às centenas. "Há noites em que só se vê cabeças", sorri José Martins, um dos sócios-gerentes do estabelecimento. As comemorações do centenário, que se assinala a 26 de Junho, já começaram.
Mas voltemos a Joana. É Silva e estuda no Instituto Superior de Contabilidade e Administração Pública. Quem a faz corar com uma romântica balada é a tuna da Escola Superior de Educação, por onde passou. Pelo Piolho é que, agora, Joana Silva tem passado menos. "Estou a trabalhar em Tavira", explica, não deixando de elogiar "a envolvência, a tradição e a história" do café. "E os Leões aqui tão perto..."
"O Piolho é um marco na vida dos estudantes", sentencia Rita Gomes, de negro trajada. "É o sítio mais acolhedor. Só se vêem capas pretas", juntou Cátia Silva, vestes semelhantes às de Rita, mas frequentadora mais assídua: "Já vim aqui mil vezes".
Ricardo Rocha, da Faculdade de Medicina, não faz por menos: "Milhões de vezes!" Histórias do Piolho ouviu-as do pai, outrora estudante de Engenharia. Reclamação bem actual: após as obras - o Piolho esteve três meses encerrado em 2006 para renovação -, "subiram os preços".
"O café é acolhedor, os preços nem tanto. Mas às vezes é preferível pagar um bocado mais e estar num bom ambiente", considera André Pimenta. "O Piolho é nosso", atalha, de imediato, Ricardo Rocha.
André Pimenta, de Lamego, não fazia ideia do que era o Piolho quando chegou ao Porto. Hoje já sabe. E passou palavra aos amigos da terra. Poucos sabem, porém, por que carga de água o Âncora d'Ouro se transformou em Piolho. José Martins explica que há duas versões. Fia-se mais naquela que é contada por Reis Lima, neto de um dos fundadores: dado o aglomerado de pessoas que se juntava num espaço pequeno, os clientes começaram a dizer que mais pareciam piolhos. A segunda versão atribui a alcunha ao tratamento cerimonioso entre alunos e professores universitários que frequentavam o café em meados do século passado. Bem vistas as coisas, uma "piolhice".
Quem vê José Martins a tirar finos sem parar e Cláudio Alexandre a fintar a multidão com a bandeja cheia não imaginará que, quando a actual gerência tomou conta do café, corria o ano de 1979, a situação não estava famosa.
Foi há 30 anos que José Martins, o cunhado Edgar Gonçalves e o tio José Pires tomaram conta do café. "Vimos o Luso, o Piolho e D. Manuel II. A decisão acabou por ser responsabilidade minha. Como o Piolho estava sempre cheio, não hesitei", recorda José Martins. Não saberia, contudo, que a clientela que enchia a sala era tão problemática. O ambiente não era o melhor. Aos poucos, foi conseguindo afastar quem não interessava. E reactivar o Piolho como ponto de encontro académico, tradição espelhada nas inúmeras placas evocativas de grupos de estudantes que por ali passaram. As memórias, muitas em forma de verso, forram as paredes.
O renascimento definitivo deu-se a partir de 1997, acrescenta o sócio-gerente, que partilha a responsabilidade de tomar conta do estabelecimento com o cunhado. Um ano fica um, no seguinte fica o outro. Actualmente, com licença para estar aberto até às quatro da manhã, o café tem enchentes sucessivas. Aos fins-de-semana, a multidão enche a praça.
Idalina Gonçalves, mulher de José Martins, não tem mãos a medir na cozinha. As francesinhas são famosas. "É ela quem vem abrir o café, às seis da manhã", conta José Martins. A hora é madrugadora, mas Idalina não tempo para bocejar: "Quando chego, muitas vezes já há gente à espera para o pequeno-almoço". Torradinhas e meia de leite? José Martins e Idalina Gonçalves contam que muitos estudantes arrancam (ou acabam) o dia com uma francesinha especial regada a finos.
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