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Radio Viseu Cidade Viriato

domingo, 14 de junho de 2009

Veteranos da raia seca evocam os tempos em que as fronteiras protegiam o sustento...


Quando a Europa escancarou as fronteiras que a cumplicidade entre contrabandistas e guardas gerada no ventre das aldeias tinha franqueado há décadas, o sustento minguou na raia. E a juventude partiu.


"Quando se abriram as fronteiras - e mercadorias e pessoas puderam circular livremente -, um antigo presidente da Câmara do Sabugal disse que tinha fechado a maior empresa do concelho", evoca José Manuel Campos, presidente da Junta de Freguesia de Fóios. Muitos partiram; outros agarraram-se ao que puderam - agricultura, construção civil - e às economias amealhadas nos tempos do contrabando e da emigração clandestina.


No parque de Eljas (ou As Ellas, na fala local), Estremadura espanhola, Jose Rodriguez, 65 anos, mira com respeito o espinhaço de rocha e matos das serras das Mesas e da Malcata que separara os povos. "Ali é Fóios, à esquerda é Vale de Espinho, além Penedono. Era por ali que os portugueses vinham. Traziam de tudo - café, batatas, legumes, sardinhas", recorda.


Virado à muralha serrana inexpugnável ("Subiam e desciam por veredas que só eles conheciam..."), o monumento ao contrabandista faz jus ao relato emocionado dos velhos e sela a benevolência oficial gravada no dialecto raiano: "En memoria de aquelis homis i mulleris de un lau e outru da Raia que, con sua arríria e intercambius gañorim a vida i a amistai sincera dus lugaris".


E que levava aquela malta, noite fechada, serra acima, serra abaixo, muitos crianças ainda ("Comecei de garotinho, tinha 10 ou 11 anos, conta Manuel Aires, 80 anos, veterano de Nave de Haver), rapazes no vigor da vida ("Andei até ir à tropa e migrar", atesta Horácio Monteiro, 61 anos, à jorna entre S. Sebastião e Fuentes de Oñoro), homens feitos e até mulheres ("Fui muita vez, e a minha filha ainda foi buscar muito pão", confirma Miquelina Amaral, 88 anos, de S. Pedro de Rio Seco)?


"Centenas de coisas!", vangloria-se Manuel Aires - "azeite, sedas, roupas de senhora, medicamentos..." Postado à secretária de presidente da Junta de Nave de Haver, António Guardão, 62 anos, confessa: "Contrabandeei de tudo - minério, café, tabaco, peles de raposa, chifres de boi, vacas, cabras, ovelhas, carne, até dinheiro, quando acabaram as fronteiras -, só não passei armas nem droga!"


Do mais modesto carregador (pago à jorna, jornaleiro) ao patrão, todos asseguram a uma só voz que o contrabando não era crime. "Era para ganharmos a vida, que a zona era muito pobre, muito escrava", diz Carlos Fonseca, 72 anos, com muito monte feito entre Vilar Maior e Alamedilla, ora cumprindo a tarefa à risca, ora largando a carga na serra a fugir à guarda. "Se a guarda nos apanhava rebentava-nos os ossos à bengalada", lembra Carlos Martins, 91 anos, de S. Pedro de Rio Seco, evocando fugas com balas a silvarem sobre a cabeça.


Toninho Palos, 64 anos, entrou no contrabando no dia em que fez o exame da quarta classe com distinção. "A prenda foi levar seis quilos de café a Espanha". Um dia, uma bala varou-lhe uma perna. Mudou de vida: abalou para França.


Na aldeia, cinco homens perderam a vida na faina. António Guardão narra o caso do tio, apanhado pelo sargento do posto local já dentro do povo. "Encostou-lhe a pistola por baixo dos braços e disparou". Era miúdo mas não temeu o destino: andou na faina até ao fim. "Não era crime, só não pagava os impostos!"


Em Fóios, José Abílio Lucas, 59 anos, patrão de contrabando de gados com mais de uma vintena de homens por sua conta nas serras entre Penamacor e Almeida, diz: "Era negócio honesto - comprava num sítio, vendia noutro!" Enriqueceu? Ninguém enriqueceu. Ganhava-se a vida, fez-se economias, fez-se casa, ajudou-se os filhos, deu-se-lhes estudos.


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