Habituamo-nos a pensar os territórios como espaços de povoamento bem consolidados, com populações profundamente enraizadas e um fortíssimo sentido de pertença aos locais de origem. E essa noção parecia estar certa. Para gerações e gerações de estudiosos, de literatos e de políticos que a utilizaram até á exaustão nas suas descrições do país, este era feito de um bom número de regiões cada um com as suas características próprias marcadas por uma forma particular de ajustamento do homem ao seu meio. A mobilidade espacial, sempre vista à escala dos indivíduos, não era de molde a alterar este quadro e, portanto, não constituia uma ameaça à estabilidade dos povoamentos, antes funcionava como um processo de restabelecer os equilíbrios regionais.
A sociedade rural, em particular, correspondia a esta ideia de autarcia e funcionava de uma forma relativamente estabilizada. Ela caracterizou-se, até muito recentemente, por uma economia pouco mercantilizada baseada na exploração da terra e no trabalho, por uma estratificação social muito polarizada, contrapondo uma ampla camada de camponeses sem terra a uma reduzida camada de grandes proprietários e por uma estrutura clientelar de relações sociais unindo estas camadas entre si. A inexistência de um estrato social intermédio capaz de romper com o circulo fechado da bipolarização social manteve-se até à emergência do fenómeno emigratório na década de sessenta. O modo de vida predominante da população rural expressava-se, então, numa economia de pura subsistência, numa sobrecarga, até ao limite, do trabalho familiar e numa rigorosa contenção dos consumos para o grosso da população rural.
A pobreza generalizada dos produtores, mal compensada pela generosidade dos patrões, pela entreajuda grupal e pela assistência pública, alimentava uma atitude cautelar de minimização do risco que era pouco favorável a empreendimentos inovadores. Associados a ela, encontravam-se frequentemente o pessimismo e o fatalismo, mas também o individualismo e o sentido de autonomia que ainda hoje persistem
As últimas décadas, porém, vieram mostrar como os territórios se podem transformar rapidamente sob o efeito de dinâmicas de mobilidade humana dominadas por um quadro de oportunidades distinto do que até então prevalecera. Desde os anos 60 do séc. XX muitas regiões do país deixaram de ser capazes de assegurar a reprodução económica das suas populações e assistiram a um fluxo de abandono sem precedentes em direcção a outras regiões mais ricas ou dotadas de maior capacidade de emprego do país ou do estrangeiro. Os dados dos Censos confirmam esse fenómeno: o declínio demográfico tocou, nos últimos quarenta anos, a grande maioria dos concelhos situados a norte do Tejo, deixando de fora apenas uma pequena faixa litoral representando cerca de % do território.
As marcas do abandono são inúmeras e muito diversas. O envelhecimento da população é talvez a mais visível, de tal modo ela fica estampada no rosto dos residentes do Portugal interior. Mas o envelhecimento não é só das pessoas. Estende-se também às coisas produzidas pela acção humana: as casas, os caminhos, as levadas, as alfaias, o vestuário e até as próprias festas. E a natureza também ela não fica imune. As terras, deixadas de cuidar e entregues a si próprias, ficam de velho e recuperam o seu estado de natureza, que se alastra rapidamente as terras vizinhas, enquanto os matos, as silvas, as ervas daninhas envolvem as árvores, os muros e os espaços outrora trabalhados, definhando e destruindo a paisagem humanizada. Como um processo interactivo, a degradação da paisagem contribui, por sua vez, para intensificar a expulsão da população e amplificar o êxodo rural
O esforço para preservar uma paisagem que foi sendo construída por gerações e gerações de camponeses parece inglório, sobretudo para as pessoas que ainda vivem nas aldeias em declínio e que se vêm impotentes para contrariar o definhamento da comunidade e do seu território. Faltam as forças, faltam os meios, falta a confiança. Uma atitude de resignação e apatia emerge desta impotência e vai alimentar-se do fatalismo quase religioso que estropiou a imaginação e a arte do nosso povo.
É certo que gerações de jovens emigrados tentam combater à distância os males que atingem os seus patrícios, mas os meios que estão disponíveis para eles utlilizarem são pouco eficazes, quando não, contraproducentes. Eles constróem casas, asfaltam estradas, voltam pela festa do ano, trazem conforto e dinheiro... porém, estão ausentes e este facto é decisivo para a sorte das populações. No dia a dia, não há quem ajude, quem mobilize, quem anime, quem transmita confiança, quem olhe para o futuro. Por isso, as pequenas comunidades de aldeia vivem de recordações, não entendendo nada do presente nem nutrindo quaisquer expectativas quanto ao futuro. O drama da desertificação é o da transposição dos limiares críticos da iniciativa pessoal e da acção colectiva, ou seja, a desvitalização irreversível das comunidades.
A experiência mostra que abaixo de um determinado limiar mínimo demográfico e social as comunidades se reduzem rapidamente até à sua extinção. Para isso contribui também, a lógica de gestão das ajudas pelo próprio Estado de Bem-estar dominada pela necessidade de seleccionar e restringir os investimentos sociais por forma a garantir a sua solvabilidade económica. Em regiões em declínio demográfico ou de concentração de populações envelhecidas, a gestão racional dos recursos está a conduzir a um desinvestimento demográfico (redução da oferta de serviços) ou a uma residualização demográfica (degradação da qualidade dos mesmos). Num caso e noutro, custos sociais elevadíssimos estão a ser suportados pelas populações e a contribuir não só para a perpetuação da velha pobreza rural como para uma amplificação das dinâmicas de repulsão demográfica.
Neste quadro, a revitalização das comunidades do interior do país é um objectivo desejável mas muito difícil de levar a cabo dada a incapacidade que elas mostram de reter ou de atrair a população mais jovem e activa e isto apesar da crescente afectação de meios e recursos que tem sido feita através de políticas públicas e incentivos directa ou indirectamente orientadas para essa finalidade.
Estudos realizados em França nos anos 60 mostraram que a atracção da cidade e as representações negativas sobre o viver no campo são determinantes nas decisões dos jovens rurais sobre ficar ou partir, mesmo quando as condições de vida nas zonas rurais tenham melhorado bastante e as das zonas urbanas piorado. No caso português, é visível a melhoria da vida nas localidades do interior – designadamente nos centros urbanos - em resultado de uma política de redução das disparidades territoriais e, relativamente aos jovens, assistiu-se a um forte investimento na descentralização de infraestruturas e na disseminação de programas dedicadas a esse grupo da população. No domínio do emprego, persistindo enormes carências, os jovens beneficiam hoje de um conjunto de incentivos sem precedente para se envolverem em actividades produtivas. Por seu turno, o insucesso escolar, o abandono precoce e os níveis de escolaridade e de qualificação muito baixos que têm particular expressão nas regiões do interior, são hoje objecto de políticas de correcção que mobilizam importantes recursos humanos e financeiros. Como estão jovens a responder a todas estas mudanças ? Não existe uma avaliação definitiva sobre o assunto. Em qualquer caso, cremos que os resultados demorarão algum tempo a serem visíveis e que há que vencer as resistências quase epidérmicas dos jovens a permanecer na sua terra. E cremos sobretudo que o investimento que está a ser feito só pode ter êxito se os programas se adequarem ao perfil, às expectativas e às aspirações dos jovens e se estes virem as suas ideias e propostas suficientemente ouvidas e seriamente tidas em conta no desenho dos programas.
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